30.8.09

Hold On



A morte é de Ophelia, mas poderia ser minha. Ou tua. You tried so hard to be someone/That you forget who you are. Não queria ser Ophelia. Nem eu. Nem tu. Mas queria ser cheia. You tried to fill some emptiness/Till all you had spilled over. Espaços de vida preenchidos com destilados ou fermentados - sem distinção alguma. Depois de milhares de copos, nem isso faz mais sentido. Tampouco as artes. Apenas o que eu vejo e não queria ver. Apenas o que eu sei sem querer. When all that you wanted/And all that you have/Don't seem so much/For you to hold on to. Queria poder renascer - em um desejo incitado pelo céu azul após a chuva, como acontecera com Vincent Millay -, mas ainda não morri completamente. Queria renascer cega. Não, não desisti por inteiro. Mesmo que eu saiba como vai ser, como vai continuar sendo. Ainda que essas palavras ecoem pela eternidade, dançando no vazio. When it's hard to be yourself/It's not to be someone else. Serei sempre eu; com as correntes nos pés, de quem quer fugir e não pode, "de quem dorme irrequieto, metade a sonhar". Sonhando que sou outro, ou que tu és eu, quando, na realidade, somos ambos Ophelia.

18.8.09

Slow (and eternal) Movement


As pessoas no trem têm todas o mesmo olhar lânguido
Fixam-se em um ponto distante
Nem na paisagem, nem no passageiro desconhecido sentado ao longe
Apenas miram para qualquer lugar
E a melancolia que sentem por dentro adquire a mesma cadência das engrenagens
Muitas usam fones de ouvido
Para que a poluição sonora não lhes perturbe
Todas têm um destino, uma parada na qual descer
Embora a névoa nos olhos de um garoto indique que está perdido
Não mais do que os outros
E é bom ter uma estação a qual pertencer
Para evitar que os pés também precisem pensar
Pensar, pensar, pensar...
O ritmo do trem parece incitar o pensamento contínuo
Sem pausas, sem trégua
Um fluxo circular; torturante
A sensação do passado imperfeito entrando pelas janelas
Abertas apenas pela metade
Tão metade quanto se sentem os passageiros
A angústia de não conseguirem possuir nenhum dos tempos
[foge-lhes o passado; escorre-lhes pelas mãos o presente; escapa-lhes o futuro]
Domina-os
São incompletos em função disso
E o trem, inexoravelmente, não deixa que esqueçam
Correndo por trilhos nos quais não voltará
E sem nunca deixar adivinhar a curva que está por vir

Entre os anódinos que ali estão
Um casal parece sobressair de todo o resto
Como se para eles se aplicassem outras regras
Como se não lhes atingisse a quieta lei do eterno rodar sem saber para onde e porque ir
Não que soubessem muita coisa
Tampouco eram tolos
Apenas não sentiam a necessidade de possuir respostas
E não chegavam a se importar com aqueles que os julgavam por isso
[Revolucionários, ambiciosos, pacifistas ou corretamente políticos
No fim de tudo, todos querem poder cruzar com a serenidade no fim dos trilhos
E que esta seja desfrutada em boa companhia]
Ali, bem nos braços um do outro
Ali onde eram capazes de refrear a velocidade
Descobriram a eternidade a dois
Diferente da eternidade suprema
Porque aquela é frágil e pode deixar de ser eterna por um pequeno deslize
Mas nem por isso é menos valorosa
Talvez seja até mais nobre
Por contrastar com os momentos finitos que lhe são anteriores e posteriores
Como se fosse uma pequena pedra brilhante em um trilho de britas
Destacando-se da mesmice opaca que vem antes e que chega depois
Ela precisa de ambas as partes que a conjuraram
E quando as tem, é tão infinita quanto à suprema
E até possui o mesmo fulgor
Algumas estações além, no entanto, ele desceu
Ela ficou
Poderia ter sido o contrário
Mas não é de hipóteses que se configura a vida
E sim de fatos
E o fato é que - com o término daquela fagulha de eternidade
A garota passou a ser mais uma a estar incompleta
A deixar os pensamentos tomar conta de sua mente antes tão silenciosa
Ela rezou para que o trem voltasse em seu caminho
Porém, se é que existe um deus, o senhor onipotente e onisciente não parecia se importar
Que a garota serenasse e entrasse na mesma cadência daqueles que lhe rodeavam
No mesmo compasso dos vagões
Pois alguns ali também tiveram a epifania da eternidade
E sofreram igualmente sua derrocada
Sentiram o mesmo baque
E quando isso aconteceu
O que fizeram foi se agarrar firmemente a algum apoio do trem
Que não pararia para que se recompusessem
E então continuam seguindo por inércia
Ainda que seus pés tencionem correr ao futuro e suas mentes estejam presas ao passado
Fixam-se em um ponto distante
Nem na paisagem, nem no passageiro desconhecido sentado ao longe
Apenas miram para qualquer lugar
E a melancolia que sentem por dentro adquire a mesma cadência das engrenagens
E então tudo está bem
Tudo está como deveria estar
E o brilho da eternidade recém descoberta começa a diminuir sua intensidade
Apaga-se aos poucos
Tal qual uma chama que vai perdendo a força conforme avança a noite
Mas o trem continua
Com os mesmos singulares ruídos de suas rodas batendo nos trilhos
Implacável em seu rodar absurdo

Tão implacável quanto o pensamento de certos passageiros
Que não podem deixar de se questionar
Estação após estação
Imploram por algum sentido para tudo aquilo
Ainda que as paisagens mudem
Ainda que alguns desçam e outros embarquem
Ainda que a tristeza não se mostre no fundo de seus olhos o tempo inteiro
Ainda que sejam aparentemente livres
Ainda que suspendam a respiração no limiar de uma nova curva
Ser obrigados a rodar sem que entendam
É apenas absurdo demais para alguns
E então uns tentam pular pela janela do trem
Enquanto outros tornam seus olhos baços
Denunciando que não se encontram de verdade ali
E que criaram um outro lugar para estar
Um lugar onde não há quem os machuque - pois não podem os tocar
Nem quem os obrigue a completar ordenadamente o ciclo nascer/morrer
Morrem primeiro
Matam qualquer ligação com o mundo ao redor
E assim, desconectados, preparam-se para então nascer
E pensam que todos deveriam poder escolher o próprio nascimento
Que ocorresse no momento em que desejassem
Quando se sentissem prontos para tanto
Porque a vontade de morte é presente em todos em algum momento
Mas o sentimento de vida parece se esvair
Talvez por ser feito de aroma mais raro
O fato é que nem sempre se quer nascer
E naqueles em que esse desejo nunca se faz concreto
Projeta-se uma sombra
Que aos poucos os transforma em espectros
Cheios de um nada imenso, de um rodar indiferente
E então se fixam em um ponto distante
Nem na paisagem, nem no passageiro desconhecido sentado ao longe
Apenas miram para qualquer lugar

Algumas pessoas no trem têm o mesmo olhar morto

10.8.09

O Espírito Verde

Emersa em águas
A cada dia mais rasas
Sou feito esponja
E me alimento do líquido inodoro
Com sabor de expectativa otimista

Deitaram-me nessa poça
E acostumei-me a sobreviver
Sorvendo diariamente pequenas doses
Temendo consumir o único fluido
Capaz de me manter longe da morte quando acordada

Como se fosse uma pequena chama
A qual alimento com cuidado
- meticulosamente
Aqueço-me e afasto o gélido pesar
Do eterno nunca mais

Aconchego-me nessa bolha
Que – como se encantada – possui um sonoro silêncio
Impenetrável por sons alheios que,
Tal qual fagulhas, dilaceram-me
E enegrecem minha espera - ânsia.

7.8.09

Todos riam despreocupadamente. Seus olhos emitiam o brilho da beleza e do bem-estar. A comida era tão farta quanto a hipocrisia. Conversas paralelas, cada uma mais alegre do que a outra, originavam um constante burburinho na sala e uma celeuma na minha cabeça. "Eu quero, sinceramente, descer de uma Mercedez vestindo um terno e ser chamado de doutor." Os sorrisos, forçando aparentar conforto, eram atestados de que os que ali estavam encontraram seu caminho e se deram bem na vida. E por qual outro motivo estariam ali se não esse?? "Eu fui efetivada!" O ar na sala ficava mais pesado a cada gargalhada que ecoava. Méritos e conquistas adquiriam asas e voavam pela grande e sufocante sala. Mas tudo estava bem. Tudo tinha que estar bem, não tinha? Crescemos, ora essa. É dever dos adultos construir uma família, ter seus filhos e ser feliz; mostrar isso aos outros, por que não? Qual o problema em copartilhar com os ex-colegas colegiais toda essa exuberante felicidade? Ex-colegas de sonhos; ex-colegas repletos de ideais comuns; ex-colegas esperançosos, jovens, com sede por fazer alguma coisa para mudar qualquer coisa; ex-colegas planejando um futuro juntos; ex-amigos. Crescemos? Mudamos. E esquecemos de mudar juntos. Os olhos não são os mesmos, por que os sonhos seriam? "Aprendi que na vida o jeito é ser egoísta, por que os outros são egoístas comigo." Mas os risos não cessavam, assim como o tempo não voltava. Celebrar!, era o que podiam fazer, ainda que, do lado de fora da janela, o mundo explodisse silenciosamente.

5.8.09

Revolution

Eu queria escrever palavras duras. Queria mudar o mundo, queria ter ideais. Um anticapitalista com um discurso enfático! Ou quem sabe salvar os pobres da fome que lhes aplaca. Eu podia me envolver em alguma causa nobre... Fazer um abaixo-assinado em favor do impeachment da governadora, ou entregar panfletos de consciência sobre o aquecimento global. Deveria apontar o dedo na cara das pessoas e lhes mostrar seus erros, seus egoísmos!! Sim, eu deveria... Mas tudo isso cansa tanto, exige tanto esforço, que prefiro apenas sobreviver aos dias.

4.8.09

Poesia, velas e vinho

Tinha as unhas de preto pintadas
Em luto por mais uma morte em sua vida
A espontaneidade, os pais, esperanças aladas
E agora ele
Deixando sua existência mais mórbida ainda

Fechou os botões da capa cinza
Que tentava afastar de seu corpo o frio congelante
"é o inverno mais rigoroso dos últimos anos"
Era o que anunciava o vendedor de jornais ambulante
Mas não era o tempo, e sim seu coração que estava gélido

A maçaneta da porta girou sob sua mão
E o ar que lhe chegou aos pulmões era quente
Havia muitas pessoas ali
Pedindo bebidas no balcão
Mas foi a solidão a única que lhe cortejou naquele ambiente

Tirou de sua bolsa o livro de poemas
Precisava de Vincent Millay e de seu conforto lírico que acalma
"Only until this cigarette is ended..."
Acendeu um cigarro, e a cada baforada
Expelia para longe a fumaça, como se fosse um fragmento de sua alma

A parca iluminação configurava um sombrio ar
Mas não era necessária muita luz
A quietude do lugar e dos que ali estavam
Era constrangedora demais para se mostrar
E as poucas velas eram suficientes para as sombras que desejavam dançar

Na mesma cadeira de sempre se acomoda
Pois as mudanças jamais atravessam as velhas portas duplas
E ali seu amor defunto hiberna
Enquanto entorna um copo de vinho atrás do outro
Sentada no canto ermo da escura taverna

3.8.09

Separou languidamente sua roupa, a qual equilibrou em apenas um braço; o outro segurava o aparelho de som. Alice levou tudo ao banheiro e voltou ao quarto para escolher algum CD. Naquele dia, Led Zeppelin IV. Passou as duas primeiras músicas – agitadas em demasia para o seu estado de espírito – e começou a se despir com Battle of Evermore. Sentiu vontade de fechar os olhos e dançar lentamente. “Oh, dance in the dark of night”... Foi o que fez durante os próximos cinco minutos e cinquenta e quatro segundos; Stairway To Heaven a fez parar. Não cabiam passos de dança naqueles acordes, que a entristeceram. Também queria sua própria estrada para o céu, que a cada degrau deixasse para trás suas dúvidas. Não; quando o ritmo da música acelerou, quis apenas um banho quente. O sol brilhava alto, marcando o meio-dia, mas o seu calor não chegava com suficiente vigor à terra; seus raios apenas passavam pelo vidro e irisavam o peito de Alice, enquanto ela deixava a água correr por seu corpo. A música seguinte a fez abandonar sua introspecção. Foi quando ela me notou. Eu estive ali por uma semana inteira, compartilhando ao mesmo tempo o espaço do chuveiro e aquele momento íntimo. Quando a vi pela primeira vez, soube que se banhar não era para ela apenas um ato do cotidiano. Além de Bob Dylan, Janis Joplin, Pink Floyd, Joni Mitchell, Beatles e BB King, ouvi também seus pensamentos, adivinhei-os pelos traços de sua face. Alice realmente achava que poderia remover de si, com a força da água, tudo o que desejasse; deixava escoar pelo ralo o passado que lhe perturbava e mantinha apenas aquilo que lhe aprazia. Ou ao menos era nisso que gostava de acreditar enquanto esfregava o sabonete em sua pele. Quando me viu, empurrou com o pé até mim a água acumulada no chão. Eu atrapalhava seus devaneios, apesar de ter estado ali por seis dias sem ter sido descoberta. A garota era tão presa a si mesma que aquilo que lhe circundava parecia fazer parte de um mundo no qual ela era apenas uma visitante. Tentei fugir do jato de água, mas não fui ágil o bastante; debati-me brevemente, mas logo cansei. Minha paralisação foi o sinal verde para o seu fluxo de pensamentos. Não mexi mais nenhum músculo e fiquei como morta. Alice fechou o chuveiro com o início de “Going To California” e então me olhou novamente; teria que passar por mim para sair. Continuei sem me mover. Foi então que seus olhos pareceram se desviar de seu interior e neles vi estampado o terror: “Meu Deus, eu matei a lagartixa!” Em todos os dias que estive ao seu lado sem que soubesse, nunca havia presenciado tal envolvimento com algo externo; só por isso não pude dar qualquer sinal de que estivesse viva. Abismada, foi me empurrando com os mesmos jatos de água que me lançara antes. Perto do meu abismo, não pude conter minha pata dianteira, que se levantou em sinal de suplício. Foi, embora, um movimento brusco e fugaz, o qual Alice considerou apenas um último espasmo, mas que lhe arrancou um grito abafado. Com um esforço que lhe sugou todas as energias, deu-me o último empurrão. No mesmo instante em que meu corpo tocava o chão com um baque, ouvi seus sussurros cantados: “Standing on a hill in my mountain of dreams, telling myself it's not as hard, hard, hard as it seems…” Não era egoísmo ou adoração do próprio eu que a trancafiaram em sua mente; era a questão primordial de Camus que atravessava sua mente de um lado para outro: “Vale a pena viver?!” Minha falsa morte ressuscitara a questão. Eu estava viva, mas não faria qualquer esforço para lhe provar isso.

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