3.8.09

Separou languidamente sua roupa, a qual equilibrou em apenas um braço; o outro segurava o aparelho de som. Alice levou tudo ao banheiro e voltou ao quarto para escolher algum CD. Naquele dia, Led Zeppelin IV. Passou as duas primeiras músicas – agitadas em demasia para o seu estado de espírito – e começou a se despir com Battle of Evermore. Sentiu vontade de fechar os olhos e dançar lentamente. “Oh, dance in the dark of night”... Foi o que fez durante os próximos cinco minutos e cinquenta e quatro segundos; Stairway To Heaven a fez parar. Não cabiam passos de dança naqueles acordes, que a entristeceram. Também queria sua própria estrada para o céu, que a cada degrau deixasse para trás suas dúvidas. Não; quando o ritmo da música acelerou, quis apenas um banho quente. O sol brilhava alto, marcando o meio-dia, mas o seu calor não chegava com suficiente vigor à terra; seus raios apenas passavam pelo vidro e irisavam o peito de Alice, enquanto ela deixava a água correr por seu corpo. A música seguinte a fez abandonar sua introspecção. Foi quando ela me notou. Eu estive ali por uma semana inteira, compartilhando ao mesmo tempo o espaço do chuveiro e aquele momento íntimo. Quando a vi pela primeira vez, soube que se banhar não era para ela apenas um ato do cotidiano. Além de Bob Dylan, Janis Joplin, Pink Floyd, Joni Mitchell, Beatles e BB King, ouvi também seus pensamentos, adivinhei-os pelos traços de sua face. Alice realmente achava que poderia remover de si, com a força da água, tudo o que desejasse; deixava escoar pelo ralo o passado que lhe perturbava e mantinha apenas aquilo que lhe aprazia. Ou ao menos era nisso que gostava de acreditar enquanto esfregava o sabonete em sua pele. Quando me viu, empurrou com o pé até mim a água acumulada no chão. Eu atrapalhava seus devaneios, apesar de ter estado ali por seis dias sem ter sido descoberta. A garota era tão presa a si mesma que aquilo que lhe circundava parecia fazer parte de um mundo no qual ela era apenas uma visitante. Tentei fugir do jato de água, mas não fui ágil o bastante; debati-me brevemente, mas logo cansei. Minha paralisação foi o sinal verde para o seu fluxo de pensamentos. Não mexi mais nenhum músculo e fiquei como morta. Alice fechou o chuveiro com o início de “Going To California” e então me olhou novamente; teria que passar por mim para sair. Continuei sem me mover. Foi então que seus olhos pareceram se desviar de seu interior e neles vi estampado o terror: “Meu Deus, eu matei a lagartixa!” Em todos os dias que estive ao seu lado sem que soubesse, nunca havia presenciado tal envolvimento com algo externo; só por isso não pude dar qualquer sinal de que estivesse viva. Abismada, foi me empurrando com os mesmos jatos de água que me lançara antes. Perto do meu abismo, não pude conter minha pata dianteira, que se levantou em sinal de suplício. Foi, embora, um movimento brusco e fugaz, o qual Alice considerou apenas um último espasmo, mas que lhe arrancou um grito abafado. Com um esforço que lhe sugou todas as energias, deu-me o último empurrão. No mesmo instante em que meu corpo tocava o chão com um baque, ouvi seus sussurros cantados: “Standing on a hill in my mountain of dreams, telling myself it's not as hard, hard, hard as it seems…” Não era egoísmo ou adoração do próprio eu que a trancafiaram em sua mente; era a questão primordial de Camus que atravessava sua mente de um lado para outro: “Vale a pena viver?!” Minha falsa morte ressuscitara a questão. Eu estava viva, mas não faria qualquer esforço para lhe provar isso.

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